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Livros. Notícias. Rumores. Apontamentos.

A Viagem do Elefante, o seu melhor romance da última década (José Mário Silva)

«Ao acompanhar a épica travessia da Europa por um elefante indiano, de Lisboa a Viena, em pleno século XVI, José Saramago regressa à ficção com inesperado fulgor e assina o seu melhor romance da última década [...], depois de uma sequência de alegorias menores sobre os malefícios da globalização (A Caverna, 2000), as fragilidades da democracia (Ensaio sobre a Lucidez, 2004) e o mais antigo dos temores metafísicos (As Intermitências da Morte, 2005).
Salvaguardadas as devidas distâncias, se há livro com o qual A Viagem do Elefante pede comparação, tanto em termos de estrutura como de fôlego narrativo, é Memorial do Convento (1982). Não há aqui um convento-metáfora do país, nem instrumentos musicais no fundo de poços, nem voos de passarola, nem personagens tão fortes como Baltasar e Blimunda. Mas há a mesma capacidade de fixar um momento da nossa História, construindo à sua volta um universo verbal («porque tudo isto são palavras, e só palavras, fora das palavras não há nada»), um universo que se expande e abarca, numa complexa teia de pequenas histórias paralelas, as várias faces da experiência humana.
Na sua simplicidade, o título não podia ser mais literal. A história do livro confunde-se com a de Salomão, o elefante indiano que D. João III resolveu oferecer, em 1551, ao arquiduque austríaco Maximiliano II, então regente de Espanha. No centro de tudo está a odisseia do «bruto paquiderme» através da Europa: do cercado em Belém à corte de Viena, passando por Figueira de Castelo Rodrigo, Valladolid (onde é entregue aos cuidados do arquiduque) e os terríveis Alpes, onde a passagem do Isarco ou o desfiladeiro de Brenner mais se assemelham a armadilhas de neve e gelo.
Saramago é especialmente eficaz a descrever a forma como a caravana se organiza e desloca, perturbando a ordem dos lugares por onde passa, fascinando as gentes e alimentando mitos (entre eles o do falso milagre de Pádua, mesmo a jeito da Contra-Reforma que se preparava ali tão perto, em Trento). No fim, o animal e a sua longa jornada são apenas um «pretexto, nada mais». Um pretexto para o narrador, tipicamente saramaguiano (isto é, metaliterário, auto-irónico e com tendência para abusar dos anacronismos), cumprir a sua missão: a de nos prender aos sortilégios da literatura.
Texto de José Mário Silva publicado na LER aquando da publicação do livro (2008).

A última entrada de Outros Cadernos de Saramago

«Acho que na sociedade actual nos falta filosofia. Filosofia como espaço, lugar, método de refexão, que pode não ter um objectivo determinado, como a ciência, que avança para satisfazer objectivos. Falta-nos reflexão, pensar, precisamos do trabalho de pensar, e parece-me que, sem ideias, não vamos a parte nenhuma.» Último post (que recupera uma entrevista de Saramago) no blogue Outros Cadernos de Saramago.

Milagrário Pessoal (José Eduardo Agualusa)

Naquela noite aconteceram tigres e foi assim pelo país inteiro. Na cidade de São Paulo da Assunção, a que os mais antigos, como eu, ainda dão o nome de Luanda, uma centena desses grandes gatos silvestres cruzou com suas ágeis patas de veludo a dormência da Ingombota. Muitos os viram. O lume dos olhos riscando o error da madrugada, detendo-se aqui para cheirar as brasas de uma fogueira já quase extinta, ali para sorver a fatigada lama de alguma cacimba. Avançaram depois sobre a praça, onde ficam as casas e palácios dos governadores e capitães gerais destes reinos e suas conquistas, com honrada e sumptuosa morada, e em frente o corpo da guarda, e uns poucos mais de passos adiante o Paço Episcopal, sito junto à Igreja Matriz e assim foram indo, alarmando uma companhia de empacasseiros, que não tentaram dar-lhes caça, antes deles se apartaram muito lestos e em altas vozearias e apupadas. Empacasseiros são soldados pretos. Todos se acham armados de espingardas. Vestem uma tanga feita da pele de algum animal selvagem, bem apertada à roda da cintura, e trazem na cabeça uma grinalda de penas. Têm fama de bons soldados, e homens bravos, mas neste caso não fizeram justiça à boa glória de que desfrutam, pois fugiram, como disse, em gritaria, e esse alarme despertou as famílias nos seus palacetes e sobrados e muita gente assomou às varandas, vendo, sem compreender, o mesmo que eu vi: tigres, às dezenas, varando as ruas. No dia seguinte corria o forte boato de que tais tigres mais não eram do que aquela depravada corte de seiscentos homens trajados como fêmeas com que Dona Ana de Sousa, a Rainha Ginga, para toda a parte se fazia acompanhar.

Quando os holandeses invadiram a cabeça destes reinos, províncias e senhorios, estando os portugueses em desesperada fuga para a Vila da Vitória de Massangano, propuseram alguns oficiais, pessoas inteligentes nos usos e costumes da terra, que se contratassem a negros encantadores para que fizessem entrar na cidade onças, leões e tigres, de forma que tais feras, enfurecidas, engulipassem as tropas invasoras. Opôs-se o bispo, pessoa de muita fé, dizendo que não convinha a estratégia, pois não era guerra limpa, se não bastante suja, visto recorrer a artes do maligno, e não se fez o referido trato, o que no meu juízo foi muita pena.

Excerto do segundo capítulo de Milagrário Pessoal, novo romance de José Eduardo Agualusa, a publicar brevemente pela D.Quixote.